11.3.11

Um mito sobre a origem da arte

Antes de um homem partir para longe, sua amante contorna com uma linha a sombra de seu rosto, projetada sobre a parede pela luz de uma lanterna. O pai da amante, o ceramista Butadès de Sicyone, aplica argila sobre o esboço e faz com isso um relevo que endurece e é queimado sobre fogo com outras peças cerâmicas.
Aqui o fogo do forno e os calores do amor colaboram. Aqui, um pai e uma filha são cúmplices. Aqui, a sombra e a luz desempenham seus papéis. Aqui, o contorno, o traço descrito por uma mulher é "preenchido", completado por um homem. Aqui, o vazio de uma superfície é a origem de um volume. Aqui, uma amante quer guardar melhor a lembrança de um amante. Ela acredita talvez numa magia do retrato pintado, que lhe daria um poder sobre o homem ausente. Aqui, a procura da distância e o desejo de aproximação não cessam de coexistir. O amante distancia-se em direção ao estrangeiro. Antes disso, ele se mantém a distância da parede sobre a qual sua sombra se projeta. Para traçar sua linha sobre a parede, a amante deve se separar, provavelmente, do corpo do amante. Ou, pelo menos, ela divide sua atenção entre o corpo de carne desse amante e sua sombra projetada. Ela antecipa sua partida, sua ausência futura, para torná-lo presente mais tarde. Para cozer seu relevo, o pai destaca-o da parede.

Texto editorado por Luiz Palma do artigo "Gestos e fábulas de alguns pintores: arte e psicanálise" de Gilbert Lascault.  In A Invenção da Vida - arte e psicanálise. Edson Luiz André de Souza, Elida Tessler e Abrão Slavutzky (Org). Editora Artes e Ofícios. Porto Alegre, 2001.
Imagem: detalhe de pintura de Luiz Palma